Queijo artesanal brasileiro: premiado no mundo, criminalizado no Brasil

As recentes operações que resultaram na apreensão e desperdício de milhares de toneladas de queijo artesanal no interior de São Paulo e Minas Gerais mostram o quanto o Brasil precisa evoluir em uma legislação mais adequada à realidade do produtor artesanal.

A produção artesanal de queijos é uma das principais fontes de renda da agricultura familiar. Segundo o o Censo Agropecuário do IBGE, 77% dos estabelecimentos rurais no Brasil, quase 4 milhões de propriedades, são classificadas como de agricultura familiar, e correspondem a 23% da área de todos os estabelecimentos rurais do país – quase 1/4 do território produtivo. No caso especificamente do queijo, só em 2020, foram produzidas mais de 1.2 milhão de toneladas no país.

O queijo brasileiro tem destaque no mundo. É reconhecido pelo sabor e está no topo de listas como a “The Taste Atlas”, ranking de site norte-americano que utiliza a opinião dos usuários para avaliar comidas do mundo inteiro. Nossos produtores ganharam 57 medalhas no Mondial du Fromage et des Produits Laitiers de Tours, realizado na França. Tamanho reconhecimento atesta a qualidade e importância do mercado de laticínios para a economia brasileira.

Fiscal será investigado – entenda o caso

Há um mês, a queijaria Cabanha Mulekinha, do casal Luzita e Airton Camargo, em Ibiúna, no interior de São Paulo, foi alvo de uma ação da vigilância que apreendeu mais de 250 Kg de um tipo específico de queijo que estava em produção, foram queijos curados durante quatro meses, seguindo a tradição espanhola.

Na ocasião, a inspeção – que inutilizou e eliminou o produto, gerando grande prejuízo aos produtores – alegou que a empresa ainda não tinha o registro da queijaria. Contudo, o processo no Serviço de Inspeção Estadual (Sisp) estava na etapa final e seria concluída dois dias depois.

Para a Associação Paulista do Queijo Artesanal (APQA), que reúne 15 mil famílias de produtores do Estado, a medida é ilógica. “A empresa já detinha todos os documentos necessários para sua atuação e cumpriu rigorosamente todas as demandas do poder público”, disse o presidente da entidade, Christophe Faraud, ao jornal O Estado de S. Paulo.

“O mesmo fiscal que autorizou a destruição, logo depois apontou em laudo que a planta da Cabanha Mulekinha está em conformidade com as exigências. Isso não faz o menor sentido e só confirma que nosso setor é sistematicamente alvo de perseguição por parte da fiscalização”, afirmou.

Disputa começou há dois anos

A briga entre queijeiros artesanais e agentes da fiscalização começou em 2021, quando fiscais da Coordenadoria de Defesa Animal (CDA) destruíram 125 kg de queijo curado, 45 litros de iogurte e 9 quilos de requeijão do laticínio Lano-Alto, em São Luiz do Paraitinga. A medida gerou manifestações online de chefs como Bel CoelhoBela GilAlex Atala, Manu Buffara e Jefferson Ruedaentre outros. Todos defenderam a queijaria e condenaram a ação.

Nesse caso e no de Ibiúna, a fiscalização foi acionada após denúncias anônimas encaminhadas à ouvidoria da pasta estadual da Agricultura.

A Cabanha Mulekinha produz leite há 12 anos a partir de gado leiteiro da raça Jersey e transforma a matéria-prima em queijos inspirados em receitas da família, originária da Galícia, região do norte da Espanha. “O que aconteceu foi uma arbitrariedade”, disse Airton.

“Estávamos com tudo aprovado, cumprindo todas as exigências, que são iguais para quem produz 300 litros de leite por dia, como nós, e quem produz 100 mil litros. Quando esperávamos que viessem confirmar nosso registro, eles (fiscais) vieram destruir nosso produto”, disse.

Queijos de longa maturação também foram descartados pelos fiscais.
Queijos de longa maturação também foram descartados pelos fiscais. Foto: Matheus Shimono/Divulgação (reprodução O Estado de S. Paulo)

Segundo ele, foram investidos cerca de R$ 300 mil para instalar tanques resfriadores, aparelho para barreira de ar, câmaras frias e equipamentos para produção de queijo e manteiga para se adequar às normas. Mesmo tendo conseguido o Sisp, a queijaria está sem produzir desde a fiscalização.

Com a repercussão do caso, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado, que comanda a CDA, afastou o fiscal e fez uma reunião com os donos da queijaria e representantes do setor, comprometendo-se até a ressarcir os prejuízos. Conforme a pasta, a denúncia que motivou a fiscalização “se mostrou maliciosa” e sem fundamento.

“A atuação do fiscal contrariou a orientação da atual gestão de sempre orientar os produtores sobre as exigências da legislação, antes de qualquer medida punitiva”, disse em nota publicada à época.

Agora, o caso está em investigação do Ministério Público de São Paulo (MP-SP).

Em nota, a Secretaria da Agricultura reforçou que a Cabanha Mulekinha recebeu o Sisp da Defesa “no mesmo dia em que teve seus produtos apreendidos e destruídos” e não havia problema técnico ou higiênico sanitário que a impedisse de produzir.

“O fiscal, no caso específico, não poderia ter apreendido e destruído todos os produtos da Cabanha, por ausência de amparo legal. Agiu com desvio de finalidade ou abuso de poder, portanto. Essa é a razão pela qual houve a reunião com os donos da Cabanha Mulekinha”, disse.

A pasta afirmou que não houve pressão política para afastar o servidor. “O afastamento do funcionário revelou-se necessário diante da gravidade da ilegalidade por ele praticada – apreensão e destruição de produtos sem base na lei. Também houve determinação para instauração de processo para apuração da conduta do fiscal. Ainda, determinou-se a realização de cursos e reciclagens aos funcionários.”

A APQA também argumenta que a fiscalização deveria ter caráter preventivo e orientativo, premissa da inspeção sanitária, antes de qualquer medida punitiva.

Legislação falha

No caso da queijaria Lano-Alto, segundo a pasta, não havia legislação específica no Estado de São Paulo para os queijos artesanais.

Porém, na prática, o que acontece é que os produtores artesanais são obrigados a seguir as regras nos âmbitos federal, estadual e municipal – este último, local, muitas vezes sequer existe.

Em 2022, foi estabelecida a lei federal de nº 13.860, que deveria ter trazido benefícios para pequenos produtores, já que a nova regulamentação adapta as exigências à realidade da produção artesanal e simplifica o processo de certificação, já prevista na legislação pelo “Selo Arte”

Contudo, para Faraud, não mudou nada. “Como já acontecia antes, acabamos dependendo dos fiscais, muitos dos quais não têm qualquer preparo. O que aconteceu com a Cabanha Mulekinha é surreal, não há outra palavra.”

Para o advogado especialista em regulação de alimentos Marco Aurélio Braga, entretanto, a fiscalização não leva em conta a sanidade do alimento, resumindo-se a reunir papéis que atestem a regularidade da pequena produção – disse à Folha de S. Paulo.

“A legislação faz com que a gente olhe pra produção artesanal querendo que ela se industrialize. Essa exigência de controle de processo e o nível agressivo com o qual a fiscalização atua faz com que as pessoas fiquem na clandestinidade”, avalia.

Fonte: com informações da Folha de S. Paulo, do Estado de S. Paulo e da APQA.

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