Empresas, orientadas por seus departamentos jurídicos, mudam a nomenclatura de seus produtos para reduzir a tributação. Excesso de alíquotas e leis complexas distorcem negócios no Brasil
O Congresso Nacional começa nesta semana a discutir a reforma tributária e os parlamentares têm a chance de por um ponto final em 30 anos de discussão e, de quebra, dar ao Brasil um sistema mais simples e racional de cobrar impostos.
Quando se fala em caos tributário, não há exageros. Exagero é um imposto só ter mais de 5 mil leis, como tem o Imposto Sobre Serviços (ISS). Exagero é gastar 1,5 mil horas por ano para ficar em dia com o Fisco.
Se pairam dúvidas sobre o quanto a estrutura tributária brasileira precisa mudar, a agência de notícias da indústria vai te mostrar como esse caos produz situações absurdas.
O dia que o Leão barrou a girafa: um conto de PIS/Cofins
Em 2007, a Fundação Hermann Weege, administradora do Zoológico de Pomerode (SC), fez um contrato de permuta com o Aquário de Dallas, nos Estados Unidos. Em troca de 32 aves brasileiras, receberia três girafas, nativas da África do Sul.
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Quando as girafas chegaram ao Brasil, a Fundação Hermann Weege entendeu que não era necessário pagar PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social). Esses tributos são ligados ao financiamento de instrumentos sociais, como Previdência, auxílio desemprego e saúde e podem ser cobrados em casos de importação.
Mesmo não envolvendo dinheiro na troca entre os zoológicos, o Fisco calculou que a permuta das aves pelas girafas tinha um valor de US$ 63 mil e cobrou US$ 25,3 mil em impostos da Fundação.
O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Fundação argumentou que não se tratavam de mercadorias ou produtos, afastando a possibilidade de incidência de impostos, mas a côrte manteve a cobrança por entender que as girafas se enquadram no conceito de bem, definido pelo Código Civil, para fins de incidência de PIS/PASEP-Importação e Cofins-Importação, para a internalização no território nacional:
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
A Fundação chegou a recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), mas a maior instância judicial do país negou o recurso, mantendo a decisão do STJ.
“Ah, que vontade de tomar uma bebida láctea”
Desde o início de 2023, o McDonald’s não vende mais sorvete. Aquela composição cremosa que sai das máquinas para uma casquinha virou bebida láctea. A mudança de nomenclatura só serve para a Receita Federal. Para o consumidor, a casquinha tem cara de sorvete, textura de sorvete, gosto de sorvete, portanto, é sorvete. Para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também continua sendo sorvete, porque, entre outras premissas, passa por rápido congelamento.
Não entendeu nada? É assim que o empresário no Brasil se sente quando o assunto é tributo. O McDonald’s mudou a nomenclatura na declaração para o Fisco porque a carga tributária global da bebida láctea é de 11,78%, enquanto o sorvete paga, em média, 38,97%, somados todos os tributos. A mudança ocorreu dentro das regras estabelecidas pelo direito tributário.
O McDonald’s seguiu uma tendência que, de acordo com a Associação Brasileira do Sorvete e Outros Gelados Comésticos (Abrasorvete), tem tomado conta de grandes marcas: os produtos que sempre foram chamados de sorvete expresso ou italiano, agora viraram sobremesa ou massa gelada.
Várias situações envolvendo enquadramento de bens para fins tributários tiveram que ser respondidos pela Justiça e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). São discussões tributárias em torno da classificação fiscal de mercadorias e que podem significar milhões pagos a mais ou a menos em tributos.
Saudade do tempo em que o Sonho de Valsa era bombom
Para a Lacta, dona da marca, a diferença é grande. Ao mudar a embalagem, a empresa deixou de classificar o Sonho de Valsa como bombom e passou a classificá-la como wafer, uma combinação de recheio cremoso de amendoim e castanha de caju.
No Brasil, bombons pagam 5% de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e os wafers são isentos, pagam nada.
A mudança do Sonho de Valsa ocorreu em 2019. Dois anos depois, a marca Garoto também adotou essa estratégia.
Leite de Rosas é loção embelezadora ou desodorante?
A fiscalização pretendia cobrar uma alíquota de 22% de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por entender que se tratava de uma loção embelezadora, enquanto a empresa recolheu o tributo com uma alíquota de 7%, alegando, no Carf, que o produto se enquadrava na categoria de desodorante corporal.
O colegiado concordou com o fabricante e considerou o Leite de Rosas um desodorante.
Confeitaria de barra de cereal
Em 2017, o Carf decidiu que as barras de cereal devem ser classificados como produtos de confeitaria, cuja alíquota de IPI é de 5%.
No recurso, a Nestlé, fabricante do produto, defendia que o alimento fosse classificado como “preparações alimentícias obtidas a partir de flocos de cereais”, isento de IPI, à época. Não rolou.
Crocs são sapatos impermeáveis ou sandálias de borracha?
A polêmica envolvendo Crocs vai além de beleza x conforto. Também coube ao Carf decidir se tratam-se de sandálias de borracha ou sapatos impermeáveis.
O colegiado entendeu que, embora o material dos calçados não permita a passagem de água, só pode ser considerado impermeável o calçado coberto até a altura do tornozelo.
No processo, a empresa teve os produtos retidos em um porto, pois o auditor fiscal informou que a nomenclatura correta seria a mesma destinada a sapatos impermeáveis.
Afinal, o que são filmes fotográficos?
O Fisco não concordou. Para a Receita Federal, a classificação fiscal deveria ser 3701.30.39, relativa a outras chapas sensibilizadas por outros procedimentos, para os filmes cuja dimensão de pelo menos um dos lados fosse superior a 255mm e sensibilizada. Nesse caso, o IPI é de 7,5%.
Na contestação junto ao Carf, a importadora precisou apresentar:
1. Contrato social
2. Declaração de importação
3. Laudo técnico que baseou o entendimento do auditor fiscal
4. Comunicação da Associação Brasileira da Industria de Material Fotográfico e de Imagem – ABIMFI
5. Laudo técnico providenciado pela impugnante e
6. Extrato do licenciamento de importação do Siscomex.
Um mês depois, em 30 de setembro de 2020, o Carf entendeu que a importadora poderia classificar os filmes fotográficos como tinha feito.