Endividamento mórbido: uma correção histórica necessária

por Eduardo Carvalho de Castro e Renato Scardoa*

 

No Brasil não existe pena perpétua, certo? Errado. Apesar de a nossa Constituição Federal vedar penas de caráter perpétuo, persiste sim um tipo de pena perpétua para o empreendedor que “deu errado” nos negócios: ele é responsabilizado perpetuamente por pagar certas dívidas do negócio que fechou.

Se as dívidas são muito grandes, desproporcionais à sua capacidade de pagar, o empreendedor se torna “endividado mórbido” paro resto de sua vida. Dívidas tributárias, trabalhistas e bancárias deixadas pelo negócio que fechou são cobradas judicialmente por meio de processos de execução que prosseguem ad infinitum, para o resto da vida do “ex-empreendedor”.

Diante de processos de execução de dívida, ele fica impedido de recomeçar nos negócios, sem condições de poupar sua renda pessoal para voltar a empreender (porque toda sua poupança acumulada está sujeita a penhora judicial nos processos de execução de dívida). Eis a pena perpétua brasileira, o “endividamento mórbido”.

Os dados confirmam a existência do problema. Existem na dívida ativa federal mais de 2 milhões de ex-empreendedores responsabilizados a pagar dívidas de suas empresas totalizando R$ 1,4 trilhão, segundo a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), com uma cobrança média de mais de R$ 680.000 por devedor corresponsabilizado pelas dívidas de suas empresas.

Esses ex-empreendedores estão aniquilados economicamente, sobrevivem na “clandestinidade econômica”, sem liberdade para explorar seu potencial empreendedor. A perpetuidade da pena de “endividado mórbido” é confirmada pela antiguidade dessas cobranças em dívida ativa federal: boa parte delas está em aberto desde a década de 1990 e mesmo antes. A situação fica ainda pior se consideramos que há também dívidas tributárias para com estados e municípios, dívidas trabalhistas e bancárias dos negócios que fecharam cuja cobrança foi redirecionada aos ex-empreendedores, dados esses indisponíveis publicamente.

O “endividamento mórbido” perpétuo representa uma ineficiência econômica. O impasse gerado pela dívida desproporcionalmente maior que a capacidade do devedor sem bens penaliza três conjuntos de atores: os devedores mórbidos perpétuos, na forma descrita acima; os credores, que desperdiçam recursos valiosos na tentativa infrutífera de cobrança judicial perpétua da dívida – dados do Tesouro Nacional de 2016 indicam que menos de 0,5% do valor cobrado judicialmente é efetivamente pago pelo devedor; e, em terceiro lugar, a sociedade, que deixa de se beneficiar do potencial econômico desta persona.

Enquanto os endividados mórbidos continuarem aniquilados, a economia crescerá menos do que poderia. A riqueza nacional, o nível de emprego e de renda da população continuará a evoluir de forma pífia e desapontadora, aquém do seu verdadeiro potencial.

O que deve ser feito? Ora, diante dessa ineficiência econômica, cabe ação governamental legislativa para “desatar o nó” do endividamento mórbido perpétuo. A perpetuidade tem que acabar. Após o encerramento de um negócio e diante de inexistência de mais bens do ex-empreendedor, as cobranças devem ser encerradas. Assim o ex-empreendedor pode recomeçar, obter o “fresh start”, começar do zero outra vez. É aí que entra projeto de MLR-Marco Legal do Reempreendedorismo (PLP33/2020). Se aprovado no Congresso Nacional, o MLR facilitará a reorganização financeira e liquidação de micro e pequenas empresas e seus respectivos empresários. O empresário (pessoa física) poderá requerer a liquidação de seus bens na qualidade de equiparado a micro e pequena empresa.

Cumpridos os requisitos legais da liquidação dos bens do empresário, as cobranças são suspensas e com isso o empresário retoma sua cidadania econômica, o fresh start, o direito de começar do zero. É uma luz no fim de um longo túnel para milhões de endividados mórbidos.

 

 

 

Eduardo Carvalho de Castro é Economista e PhD em Economia Política pela Princeton University e ex-funcionário do FMI-Fundo Monetário Internacional.

 

Renato Scardoa é advogado especialista em Estruturação de Negócios e Reestruturação de Empresas. Professor de Direito Comercial. Doutorando em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP. Membro da Comissão de Juristas nomeados pelo Senado Federal para Reforma do Código Comercial e integrante do Grupo de Juristas que elaborou o texto do Projeto do Marco Legal do Reempreendedorismo.

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