A vingança do fluxo de caixa livre

Valor tem a ver com lucro, mas em muitas situações abrimos mão do lucro de curto prazo, em troca de um resultado maior em médio e longo prazo

Quando ensinava finanças corporativas, costumava indagar à turma: “Qual o principal objetivo do CEO de uma empresa?” Já utilizei essa pergunta várias vezes e a grande maioria das pessoas responde “lucro”, quando acredito que a resposta correta seria “valor”.

De fato, “geração de valor” é o conceito mais abrangente na gestão de uma companhia. Valor tem a ver com lucro, mas em muitas situações abrimos mão do lucro de curto prazo, em troca de um resultado maior em médio e longo prazo. Isso acontece, por exemplo, quando priorizamos investimentos desenvolvimento de produtos, novas plataformas tecnológicas ou mesmo na construção de uma nova fábrica.

Como calcular o valor de uma empresa?

A melhor forma algébrica para se calcular o valor de um projeto ou empresa é, e continua sendo, o famoso fluxo de caixa de descontado. Uma empresa precisa gerar caixa em um determinado momento para que aquele caixa, ao ser descontado, contribua de forma positiva para o valor presente líquido da companhia.

A definição da taxa de desconto a ser utilizada gera uma ampla discussão, mas deixemos esse assunto para outro momento. Penso que todos que já fizeram esse exercício sabem que o valor presente de um caixa futuro é altamente “deteriorado” pela taxa de desconto. O tempo custa caro. Em resumo, o lucro de uma companhia precisa aumentar muito para justificar o custo do diferimento desse capital.

A indústria de venture capital é um subsegmento de private equity, que busca empresas disruptivas, com estruturas leves e que possam crescer exponencialmente. Por hábito, existe uma tolerância maior com a falta de geração de caixa compensada pelo crescimento explosivo dessas investidas.

Afinal, muitas delas fazem a tal disrupção ao tornar acessível a um grupo maior de pessoas, algum tipo de serviço complexo, por preço ou por experiência do usuário. Várias dessas companhias se propõem a dominar um determinado mercado e o first-mover advantage acaba sendo uma grande vantagem competitiva.

Nos últimos anos, vimos um verdadeiro frenesi na indústria de venture capital, que nos levou para o desafiador status atual. Em primeiro lugar, a redução da taxa de juros global, reduzia o “dano” ao caixa futuro no tempo. O sucesso de unicórnios, criaram uma corrida de investidores e fundos para essa nova oportunidade. Com isso, valuations passaram a ser pouco importantes: em um portfólio early stage onde se busca saídas por valores superiores a US$ 1bi, o preço de entrada pouco importava: US$ 5m, US$ 10m, US$ 20m podiam resultar igualmente em um caso incontestável de sucesso.

Alguns fundos chegaram a defender o prazo de uma semana para a tomada de decisões de investimento. Outros passaram a aplicar a mesma lógica de fundos early stage em late stage, tratando o cálculo de preço de suas investidas de forma secundária. Pessoas físicas, por vezes, tentaram a sorte em startups, como se fosse trivial construir uma grande corporação.

A verdade é que a velocidade das transações e a dificuldade de se construir modelos de fluxo de caixa descontado em empresas imprevisíveis e exponenciais, levou os investidores a usarem múltiplos de métricas financeiras.

Conheço um sofisticado investidor que uma vez disse: “Primeiro calculávamos o valor de uma empresa usando múltiplos sobre seus lucros. Essas empresas deixaram de ter lucro e começamos a usar EBITDA. As mesmas empresas deixaram de ter EBITDA, passamos a usar múltiplos sobre receita. Breve serão utilizados os múltiplos sobre o número do prédio onde a empresa está instalada”.

A ganância da humanidade em busca do novo acerto, nos levou para onde estamos. O dinheiro acabou, a taxa de juros subiu e aguardar pacientemente os lucros futuros se tornou matematicamente insustentável. Se em abril de 2023 temos 13.75% de taxa de juros Selic, deveríamos pedir algo em torno de 25% ao ano, para que possamos aceitar os riscos de execução e falta de liquidez. Vale lembrar que R$ 1.000,00 trazidos a valor presente por uma taxa de 25% ao ano em 10 anos, correspondem apenas a R$ 107,00 nos dias de hoje.

A transformação dos mercados foi tão rápida quanto as mudanças impostas pela Covid ou geopolítica. Fundadores comprometidos com suas estratégias de construção agressiva de receita, viram suas fontes de caixa secarem. Os fundos, mesmo aqueles com dry powder (= capital disponível), retraíram seus investimentos buscando entender quais seriam as novas regras do jogo.  Com tudo isso, as empresas viram a pista disponível para sua decolagem reduzindo, o que levou inevitavelmente a um forte movimento de frenagem.

Em maio de 2022, a Sequoia, um dos fundos que mais respeito, lançou uma cartilha para suas investidas, explicando a importância do caixa como forma de gerar sustentabilidade para os negócios. Na minha opinião, esse foi um marco de nosso retorno aos fundamentos em venture capital.

A verdade é que a essência de venture capital na América Latina continua muito forte: seja pela concentração de negócios em empresas tradicionais, que deixam espaço para novos entrantes; seja pela migração de talentos egressos de universidades para o empreendedorismo; ou seja ainda pela tecnologia, que permite a construção de bancos sem agências e modelos de verticalização digitais, sem se precise assentar em um único tijolo. Mercados ineficientes pedem por mudanças, inovação e disrupção.

Acredito que o pêndulo de ajuste tenha ido longe demais, ao ponto de permitir lançar para fora da pista, empresas e pilotos de qualidade. Há alguns meses, recebi um empreendedor que trabalhava fortemente para reduzir a queima de caixa de sua empresa. Ele se sentia injustiçado, dado que todos os fundos haviam pedido para ele “dançar conforme uma determinada música” e que ao se preparar para tal, tudo mudou repentinamente.

Há quem diga que veremos uma extinção em massa de startups no segundo semestre de 2023 e primeiro semestre de 2024, justamente aquelas que não conseguirem captar recursos ou melhorar a saúde de seus unit economics. A boa notícia é que muitas das empresas mais fortes do mundo foram criadas em momentos de crise ou tempos difíceis para seus concorrentes, os quais impuseram disciplina de gestão e execução aos seus modelos de negócio. Penso que agora não será diferente, afinal crises vêm e vão de uma hora para outra e são de difícil previsão.

Enquanto as coisas estão confusas, a segurança está nos fundamentos, dos quais o fluxo de caixa livre é seu principal protagonista.

*Com informações do portal Exame

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